Páginas

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Beatles pediam 160 contos

por FERNANDO MADAÍL
26 Setembro 2009

A primeira entrevista dos Fabulosos Quatro de Liverpool a um jornalista português, ao contrário do que noticiámos há duas semanas, foi concedida em 1964 ao correspondente do 'Diário de Lisboa' em Estocolmo.

De súbito, na conferência de imprensa dos "quatro guedelhudos" que tinham provocado uma histeria generalizada em Estocolmo, surgia a pergunta: "Qual o vosso preço para actuar em Portugal?" Naquele sábado, 29 de Agosto de 1964, os leitores do Diário de Lisboa ficavam a saber que "os Beatles querem 160 contos (por espectáculo) para virem actuar a Portugal". E, para não haver dúvidas, logo na primeira página surgia uma fotografia em que o correspondente do jornal na Suécia, perante o olhar de Ringo, conversava com Paul McCartney.

A questão colocada por César Faustino naquela "atmosfera impossível" da conferência de imprensa, onde os Fabulosos Quatro tinham dado respostas bizarras (ver outro texto) e "predominavam os risinhos nervosos de dezenas de meninas que furaram o cerco policial", não obteve logo resposta.

"Ninguém disse nada. Todos indicaram com o olhar o único que podia responder: mr. Taylor, chefe da comitiva e braço direito de Brian Epstein, o génio que descobriu os Besouros (tradução de Beatles) no Cavern Club da brumosa Liverpool e lançou a campanha publicitária mais fabulosa de todos os tempos, retirando 25% de todas as receitas do grupo."

Horas depois, no segundo andar do hotel, César Faustino era o primeiro jornalista português a falar com os músicos mais famosos do planeta. "Como prometeu, o sr. Taylor deu-nos a resposta mais tarde, num encontro confidencial: duas mil libras (160 contos) por espectáculo e pagamento de todas as despesas de viagens e estadia. Não foram mencionadas as percentagens sobre as entradas que o grupo também costuma receber, como aconteceu agora em Estocolmo, onde os Beatles extraíram, líquidos, 600 contos, tendo a organização custado cerca de 300 e o organizador (a Associação de Turismo) recebido quase 500 contos. Em todo o caso, talvez alguém se queira arriscar a levar o famoso quarteto a Portugal.

- Quando poderia ser? - pergunto.

- Nunca antes de Janeiro ou Fevereiro de 65. Após nova viagem aos Estados Unidos, de onde só se regressará a 22 de Setembro, haverá uma digressão de dez semanas pela Inglaterra. Depois, repouso e Natal. Em seguida, outro filme [após A Hard Day's Night, rodado nesse ano, era Help!]."

Ainda hoje, além de guardar as cópias, tiradas a papel químico, das folhas dactilografadas da reportagem enviada para Lisboa (se o fax ainda era uma miragem, o computador nem sequer era uma utopia!), César Faustino relê as notas que tomou sobre cada um dos músicos, pois George era o mais "sisudo", Paul revelava-se o "criativo", Ringo parecia o "imprevisível" e John mostrava-se o "sarcástico".

"Fomos interrompidos" - prosseguia a reportagem - "pela aproximação dos quatro rapazes, agora desgrenhados, brincalhões, naturais. Neste círculo privado e informal, os fenómenos Beatles pareceram-me mais simpáticos e acessíveis, justificando a sua atitude da manhã [com os jornalistas] por uma sucessão extenuante de exibições, viagens, conferências de imprensa. 'Temos também o direito de nos sentir cansados'."

Excelente repórter, César Faustino "[aproveita] a oportunidade para obter de Paul uma confirmação: '- É verdade que você e Ringo passaram por Lisboa, a caminho das Caraíbas?' " Os jornais portugueses tinham noticiado que, a 3 de Maio, Paul se tinha registado Ritz com o nome de Manning e Ringo assinara a ficha do hotel como Stone.

"- Sim. Quando fomos gozar uns dias de férias.

- As vossas numerosas admiradoras portuguesas ficaram ofendidas por vocês não se terem mostrado no aeroporto.

- Verdade? Lamento muito. Diga--lhes que temos o maior interesse em actuar em Portugal. Talvez em breve isso possa acontecer." Sabe--se que nunca aconteceu.

A longa peça jornalística assinada por César Faustino - e escrita com elegância e num estilo que ainda se mantém actual - já retratava a origem da loucura do fenómeno que marcaria toda aquela década.

"Os quatro guedelhudos pularam do avião para os automóveis estacionados na pista, acenando fugidamente à multidão histérica que gritava selvaticamente. Um escolta policial 'à Kruschev' [então, o líder soviético] soou as sereias e o cortejo largou vertiginoso. Uma rapariga de 12 anos arriscou a vida, lançando-se sobre o capot de um dos veículos para gritar: 'Amo-vos.' Entretanto, saíam os jornais com edições extras: 'Chegaram os Beatles.'."

E, no entanto, o grupo que levava "três mil pessoas a assaltarem a aerogare" tinha estado na Suécia no final do ano anterior. "Nessa altura, andaram na rua sem serem reconhecidos. Actuaram em pequenas salas, com dezenas de meninas à volta, mascando pastilhas elástica e marcando o ritmo com palmadas. Conseguiram apenas que a TV registasse um reduzido trecho de uma interpretação. Procuraram os jornalistas com interesse e posaram agradecidos para os fotógrafos. E no final da tournée levaram, no bolso, cada um, nove contos."

Neste intervalo de tempo, como registava o correspondente do Diário de Lisboa, "amealharam um fortuna colossal", "um livro acerca da sua vida está traduzido em quase todas as línguas do mundo", "de She Loves You venderam-se quatro milhões e meio de [discos] e I Want to Hold Your Hand já ultrapassou os três milhões", tendo-se transformado "no maior fenómeno [não apenas musical ou artístico mas essencialmente psíquico e social] do nosso tempo".

"Sete meses decorridos [após a anterior actuação na Suécia]: uma brigada policial de 16 homens, seis carros, quatro motos e uma matilha de cães ferozes protegeram os rapazes da loucura violenta das multidões. A não ser para os espectáculos, eles nunca puderam sair do hotel, onde alugaram os dez quartos mais luxuosos e foi montada uma esquadra permanente de polícia. Muitas jovens ficaram nas imediações, dia e noite, ao relento, na esperança de um sorriso dos seus ídolos. Mais de 30 mil pessoas assistiram às suas actuações, pagando de 57 a 228 escudos por cabeça. A televisão foi impedida de transmitir os shows, mesmo parcialmente, e viu recusada uma proposta para um programa especial. E centenas de repórteres, alguns vindos do estrangeiro, esperaram pacientemente mais de uma hora que o quarteto oleasse e frisasse as guedelhas."

Acerca do espectáculo, César Faustino escrevia que "o quarteto é admirável", pois "o seu ritmo e a forma de interpretar galvanizam". "Mas o verdadeiro espectáculo foi o público. Foi o histerismo selvático de gente a gritar e a pular nas cadeiras. De rapazes e raparigas a dançar e a correr nas coxias ou a atirar-se para chão em êxtase. De centenas de fanáticos, mocinhas sobretudo, que, apesar de um fosso de metro e meio e da resistência policial, tentaram por todas as formas assaltar a cena, para beijar os seus ídolos, oferecer-lhes flores, pedir- -lhes autógrafos ou depositar-lhes nas algibeiras missivas apaixonadas. " E, para se entender o clima, o jornalista terminava a reportagem de forma notável. "Eu próprio, ao regressar a casa, à noitinha, me surpreendi a cantarolar - 'Yeah! Yeah! Yeah!'." Eloquente!

http://dn.sapo. pt/gente/ interior. aspx?content_ id=1372785

Nenhum comentário:

Postar um comentário