Edison Veiga - O Estado de S.Paulo
Foram duas semanas de muita negociação e pedidos de
autorização para lá e para cá até conseguirmos um crachá vermelho, onde
se lia, em letras garrafais, VISITANTE ACERVO. Bingo! Com ele
entraríamos na reserva técnica do Museu de Arte de São Paulo (Masp), o
mais importante museu da América Latina. Claro que não sem antes
passarmos para a mocinha da recepção "nome, telefone, RG, empresa" e
ouvirmos as instruções da museóloga Eunice Sophia, coordenadora do
acervo e nossa guia durante esta etapa da Expedição: "É um cofre, é
fechado. Ali estão as obras descansando, para serem preservadas. E nada
de fotos lá dentro". Frustração da dupla repórter-fotógrafo.

Tiago Queiroz/AE
Reserva técnica da Pinacoteca
Até chegar à sala, um verdadeiro labirinto cheio de fechaduras e
câmeras de segurança, a preocupação já era grande. E aumentou depois
que, em dezembro de 2007, ladrões entraram no museu e furtaram de seu
acervo bilionário quadros de Picasso e Portinari. São quatro portas e a
última é como um cofre. As paredes do espaço, de 600 metros quadrados,
onde ficam 8 mil valiosas peças de arte, são espessas, também como as de
um cofre de banco. E um sistema de espelhos permite que, de um vértice,
se vigie o perímetro completo da sala.
Eunice parece feliz. "Se pudesse, traria mais gente aqui. Tenho muito
prazer em mostrar a reserva. É uma maneira de valorizar a coleção,
conscientizar as pessoas da importância disso", comenta ela, apaixonada
pelo Masp desde criancinha (hoje tem 77 anos), quando ia com a mãe à
instituição. Nessa época, o museu ainda funcionava na Rua 7 de Abril - o
emblemático prédio da Avenida Paulista foi inaugurado em 1968. "Mas só
posso trazer gente aqui com autorização por escrito da diretoria",
explica.
Por isso, desde 2004, quando a atual reserva técnica começou a
funcionar, menos de 400 pessoas pisaram ali. Os nomes ficam registrados
em um livro, preenchido na saída. Em geral, são pesquisadores e
curadores de instituições internacionais. "Mesmo nesses casos, o acesso
só é autorizado se a obra for grande. Pois em caso de peças menores
preferimos trazê-las até uma sala, em vez de levar o pesquisador até a
reserva."
Eunice é um catálogo vivo do Masp. E nem precisa recorrer aos
registros. "Temos tudo informatizado, mas também no papel, porque
confiamos mais no velho lápis", diz, enumerando as obras mais
importantes. "Temos 13 Renoirs, 11 Toulouse Lautrecs, 73 esculturas do
Degas, 4 Picassos...", e vai mostrando, feliz, suas obras favoritas. "E
tem os Portinaris aí", aponta para outro lado. Também mostra de quem não
é fã: Romero Britto. Está lá a obra que o artista fez em comemoração
aos 450 anos de São Paulo. "Mas gosto pessoal não deve ser usado para
julgamento artístico", pontua.
"Está vendo este Matisse?", diz, apontando para O Torso de Gesso, de
1919. "Uma vez fui acompanhá-lo a uma exposição nos Estados Unidos.
Todos comentavam que era a obra mais bonita da mostra." Eunice é toda
orgulhosa do acervo do Masp. Mas resistiu à insistência da reportagem e
não permitiu nenhum clique ali dentro. "Meu trabalho, eu faço o melhor
que posso", frisa. A reportagem teve de se contentar com uma imagem de
esculturas de Degas sendo transportadas para fora da reserva - passariam
por preparação e embalagem para embarcar ao Chile, onde integrarão uma
exposição.
Patrimônio. Na Pinacoteca do Estado, a coleção de 12 mil quadros -
que compreende principalmente a produção artística brasileira dos
séculos 18, 19 e 20 - fica guardada em oito salas - seis no prédio da
instituição, na Luz, e duas em endereços externos, com monitoramento 24
horas por dia.
"A missão de um museu não é só expor. É guardar para estudo, para
pesquisa", explica Valeria de Mendonça, coordenadora do Núcleo de
Conservação e Restauro da Pinacoteca. "E a reserva técnica é como uma
reserva ambiental: uma maneira de proteger os patrimônios, de guardar os
acervos."
Dentro das salas, o monitoramento do ambiente - luz, temperatura e
umidade relativa do ar - é constante, a exemplo do Masp. Mas com uma
diferença: ali também é local de trabalho de quatro funcionários. "Nossa
reserva é uma coisa viva. Não um armário. É preciso vistoriar as obras,
pesquisá-las", afirma.
A Pinacoteca recebe de 100 a 150 solicitações de empréstimo por ano,
de instituições de todo o planeta. A cada pedido, uma comissão analisa
tanto o estado da obra quanto do espaço onde a mesma ficará exposta -
segurança, temperatura, iluminação, tudo precisa ser avaliado. "O
trâmite leva de seis meses a dois anos", diz a coordenadora. "Aprovado,
sempre um funcionário da Pinacoteca precisa acompanhar tudo: embarque,
viagem, desembarque, montagem e desmontagem."
Todas as obras estão catalogadas em cadernos. Cada uma tem um número e
uma pasta correspondente, onde há dados de toda a sua "vida": para onde
já viajou, quando ficou exposta na Pinacoteca, quando e por qual motivo
foi restaurada e outras informações. O funcionário mais antigo do
setor, do tipo que ri quando alguém faz a manjada piada de que ele é tão
arraigado ali que daqui a pouco vai ser incorporado ao acervo da
reserva técnica, é Antonio Carlos Tímaco, de 52 anos. Trabalha na
Pinacoteca desde 1978. "Gosto das obras de abstração lírica, como as de
Tomie Ohtake e Wega Nery", exemplifica, com ares de crítico de arte.
História. No tradicional Museu do Ipiranga, o Museu Paulista, obras
de arte não são a tônica. Entre os 150 mil itens - menos de 20% em
exposição - há muitos itens que foram parte do dia a dia do brasileiro
de outras eras. "Coisas do cotidiano são importantes para o museu, fazem
parte da política da instituição", explica o supervisor do Serviço de
Objetos, Adilson José de Almeida. Ele vai abrindo os armários e
mostrando armas, serrotes, lápis, canetas, brinquedos, leques... "E
temos alguns milhares de itens que pertenceram ao aviador Santos
Dumont." Entre eles, uma agenda de compromissos, outra de endereços e um
caderno de cálculos.
Esse perfil faz o museu ser procurado por famílias que querem se
desfazer de quinquilharias. "Recebemos de duas a três ofertas de doação
por semana", explica Adilson. Se tem valor histórico - o que acontece em
metade dos casos -, o material é aceito. O processo inclui pedido de
fotos, conversa por telefone ou e-mail, análise presencial do objeto
oferecido e decisão soberana do conselho deliberativo, apoiado por um
laudo técnico. Em média, leva um ano para que o objeto oferecido, se
aceito, seja incorporado pela reitoria como patrimônio da Universidade
de São Paulo (USP) - que mantém o museu.

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