Apadrinhado por Martha Argerich, pianista Sérgio Monteiro abre mão do virtuosismo vazio em nome da densidade no primeiro disco de sua carreira
É possível que a passagem dos cinqüenta anos da morte de Villa-Lobos, em 2009, constitua a tão merecida chance para o maior compositor brasileiro ser melhor representado em gravações. No domínio pianístico isso já acontece. Além da excelente integral da obra pianística por Sonia Rubinsky - que a Naxos deve colocar no mercado internacional este ano -, um dos mais talentosos pianistas jovens brasileiros, o carioca Sérgio Monteiro, também escolheu Villa-Lobos para estrear em CD que agora chega às lojas pela Biscoito Fino.
O disco, gravado em outubro do ano passado no Rio, traz as duas séries Proles do Bebê: a primeira descreve em oito miniaturas as bonecas do bebê; e a segunda traduz em música os animaizinhos de pelúcia do bebê. Villa a compôs com três anos de intervalo. A primeira, de 1918, tem tudo a ver com Ravel e Debussy. Brinca com a politonalidade que tinha acabado de conhecer ao vivo com Darius Milhaud vivendo no Rio em 1917. São encantadoras, levíssimas e etéreas vinhetas pianísticas com um grau de invenção tão elevado como o das Cenas Infantis de Schumann. Monteiro consegue o tom exato, sem exagerar nos maneirismos nem banalizá-las. É só conferir em Branquinha, Caboclinha e sobretudo no conhecidíssimo Polichinelo que Arthur Rubinstein transformou em seu extra favorito.
''''A Prole nº 2 é extremamente difícil'''', confessa Monteiro ao Estado. ''''E raramente escutada ao vivo, por completo. São nove peças, de grande desafio técnico, que podem ser vistas como estudos transcendentais. Eu venho apresentando essas obras há dois anos em recitais por toda a Europa, sempre com grande fascínio por parte do público. O desejo de gravá-las, depois desse tempo de amadurecimento nos palcos, foi inevitável.'''' Para conferir como Monteiro transfere para a interpretação estes conceitos, basta ouvir suas irretocáveis versões de O Camundongo de Massa, O Cavalinho de Pau ou O Lobozinho de Vidro.
Transcendental não quer dizer, como corretamente faz Monteiro, pirotécnico. Na Prole nº 2, de 1921, a rítmica e um piano mais virtuosístico - selvagem, diriam os franceses - afloram, numa espécie de deglutição pelo Villa do Stravinski da Sagração da Primavera, como acentua Almeida Prado no ótimo texto do folheto interno do CD. A harmonia se expande até beirar a atonalidade, enquanto os ritmos se enriquecem de modo impressionante. Aqui, sim, Sérgio Monteiro mostra-se ainda mais adequado. Basta comparar, por exemplo, sua interpretação com a do pianista canadense Marc-André Hamelin para a Hyperion (2000). Hamelin acelera indevidamente os tempos, a ponto de distorcer o real significado da música, uma atitude só justificável porque ele busca sempre os fogos de artifício do superpianista. Um erro no qual Monteiro jamais resvala.
Monteiro diz que ''''mesmo não sendo conhecida'''', considera a Prole do Bebê nº 2 um dos ciclos mais importantes escritos para piano na segunda metade do século 20. ''''Infelizmente, não é conhecida internacionalmente, o que não compreendo inteiramente. O repertório para piano é muito vasto, e os pianistas quase sempre preferem dedicar-se aos grande nomes do mainstream. Villa-Lobos não é enquadrado em nenhuma escola composicional do século 20, pois não possui os rigores técnicos e formais de um Stravinski, de um Bartok, ou de um Schoenberg. Sua música obedece às suas próprias normas, e é dever do intérprete encontrar essa lógica, não somente com a razão, mas com o coração e a intuição.''''
Sábias palavras, que se combinam com um toque pianístico que certamente vai levá-lo muito longe. Monteiro, protegido da pianista Martha Argerich desde que ganhou um concurso internacional de piano em Buenos Aires em 2003, já recebeu também os maiores elogios de Nelson Freire. Nascido em Niterói, estudou na Eastman School em Nova York, e hoje mora em Lucerna, na Suíça. Ele não precisava disso, mas o texto hiperbólico do folheto interno do CD o apresenta como tendo tocado ''''com todas as orquestras importantes no Brasil e no exterior''''. Ora, na lista, a mais conhecida talvez seja a Kremlin Chamber Orchestra. Entre os regentes, Charles Dutoit, na final do concurso em Buenos Aires. Mas isso nada tem a ver com o próprio músico, extremamente talentoso, que faz desta estréia um fato realmente significativo.
''''Villa-Lobos sempre me foi muito caro e desde que escutei as duas proles do bebê pela primeira vez, quando ainda era muito jovem, fiquei apaixonado pela imaginação e complexidade da obra'''', diz ele ao Estado. E confessa que relutou muito em gravar: ''''Levo muito em conta o momento especial de cada performance ao vivo.'''' Ainda bem que ele se decidiu a entrar no estúdio.
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É possível que a passagem dos cinqüenta anos da morte de Villa-Lobos, em 2009, constitua a tão merecida chance para o maior compositor brasileiro ser melhor representado em gravações. No domínio pianístico isso já acontece. Além da excelente integral da obra pianística por Sonia Rubinsky - que a Naxos deve colocar no mercado internacional este ano -, um dos mais talentosos pianistas jovens brasileiros, o carioca Sérgio Monteiro, também escolheu Villa-Lobos para estrear em CD que agora chega às lojas pela Biscoito Fino.
O disco, gravado em outubro do ano passado no Rio, traz as duas séries Proles do Bebê: a primeira descreve em oito miniaturas as bonecas do bebê; e a segunda traduz em música os animaizinhos de pelúcia do bebê. Villa a compôs com três anos de intervalo. A primeira, de 1918, tem tudo a ver com Ravel e Debussy. Brinca com a politonalidade que tinha acabado de conhecer ao vivo com Darius Milhaud vivendo no Rio em 1917. São encantadoras, levíssimas e etéreas vinhetas pianísticas com um grau de invenção tão elevado como o das Cenas Infantis de Schumann. Monteiro consegue o tom exato, sem exagerar nos maneirismos nem banalizá-las. É só conferir em Branquinha, Caboclinha e sobretudo no conhecidíssimo Polichinelo que Arthur Rubinstein transformou em seu extra favorito.
''''A Prole nº 2 é extremamente difícil'''', confessa Monteiro ao Estado. ''''E raramente escutada ao vivo, por completo. São nove peças, de grande desafio técnico, que podem ser vistas como estudos transcendentais. Eu venho apresentando essas obras há dois anos em recitais por toda a Europa, sempre com grande fascínio por parte do público. O desejo de gravá-las, depois desse tempo de amadurecimento nos palcos, foi inevitável.'''' Para conferir como Monteiro transfere para a interpretação estes conceitos, basta ouvir suas irretocáveis versões de O Camundongo de Massa, O Cavalinho de Pau ou O Lobozinho de Vidro.
Transcendental não quer dizer, como corretamente faz Monteiro, pirotécnico. Na Prole nº 2, de 1921, a rítmica e um piano mais virtuosístico - selvagem, diriam os franceses - afloram, numa espécie de deglutição pelo Villa do Stravinski da Sagração da Primavera, como acentua Almeida Prado no ótimo texto do folheto interno do CD. A harmonia se expande até beirar a atonalidade, enquanto os ritmos se enriquecem de modo impressionante. Aqui, sim, Sérgio Monteiro mostra-se ainda mais adequado. Basta comparar, por exemplo, sua interpretação com a do pianista canadense Marc-André Hamelin para a Hyperion (2000). Hamelin acelera indevidamente os tempos, a ponto de distorcer o real significado da música, uma atitude só justificável porque ele busca sempre os fogos de artifício do superpianista. Um erro no qual Monteiro jamais resvala.
Monteiro diz que ''''mesmo não sendo conhecida'''', considera a Prole do Bebê nº 2 um dos ciclos mais importantes escritos para piano na segunda metade do século 20. ''''Infelizmente, não é conhecida internacionalmente, o que não compreendo inteiramente. O repertório para piano é muito vasto, e os pianistas quase sempre preferem dedicar-se aos grande nomes do mainstream. Villa-Lobos não é enquadrado em nenhuma escola composicional do século 20, pois não possui os rigores técnicos e formais de um Stravinski, de um Bartok, ou de um Schoenberg. Sua música obedece às suas próprias normas, e é dever do intérprete encontrar essa lógica, não somente com a razão, mas com o coração e a intuição.''''
Sábias palavras, que se combinam com um toque pianístico que certamente vai levá-lo muito longe. Monteiro, protegido da pianista Martha Argerich desde que ganhou um concurso internacional de piano em Buenos Aires em 2003, já recebeu também os maiores elogios de Nelson Freire. Nascido em Niterói, estudou na Eastman School em Nova York, e hoje mora em Lucerna, na Suíça. Ele não precisava disso, mas o texto hiperbólico do folheto interno do CD o apresenta como tendo tocado ''''com todas as orquestras importantes no Brasil e no exterior''''. Ora, na lista, a mais conhecida talvez seja a Kremlin Chamber Orchestra. Entre os regentes, Charles Dutoit, na final do concurso em Buenos Aires. Mas isso nada tem a ver com o próprio músico, extremamente talentoso, que faz desta estréia um fato realmente significativo.
''''Villa-Lobos sempre me foi muito caro e desde que escutei as duas proles do bebê pela primeira vez, quando ainda era muito jovem, fiquei apaixonado pela imaginação e complexidade da obra'''', diz ele ao Estado. E confessa que relutou muito em gravar: ''''Levo muito em conta o momento especial de cada performance ao vivo.'''' Ainda bem que ele se decidiu a entrar no estúdio.
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