"Elvis, um civilizado no teatro da crueldade", assinado por Pepe Escobar, foi publicado originalmente sábado, 7 de agosto de 1982.
O rock é a mais ambiciosa forma de arte contemporânea. Para funcionar à perfeição, precisa construir um universo completo, com todos os elementos: visual (presença cênica), vestuário, faces, nome; a música - o "som", timbre da voz e clima sonoro do conjunto; e a "alma", que configura ou não autenticidade à construção. O grande performer de rock é aquele que consegue representar simbolicamente em um cenário uma pulsão fundamental que o público possui mas que não ousa liberar, com medo de cair na loucura ou na selvageria total.
jun.1972/George Kalinsky |
Fotos inédita de Elvis Presley durante show em Nova York |
Quando, em julho de 1954, Elvis Presley entrou no estúdio da Sun Records em Memphis, Tennessee, chocou todos os presentes com sua camisa cor-de-rosa e suas costeletas, e perpetrou o primeiro disco de rockabilly da história (duas metamorfoses, na linha de "country" uptempo e impulsos de blues, de That's All Right e Blue Moon of Kentucky), já levava no sangue esta perfeita conjunção de intenção, idéia e imagem. Um dia antes, dirigia um caminhão, tentava cantar como Dean Martin e esperava. Alguns dias depois, estava em todas as rádios de Memphis, fazendo história. De caipira, Elvis entrava numa "overdose" de fios roxos e cor-de-rosa, lábios retorcidos, sapatos de camurça azuis, blusões de couro negro, e o que é mais importante, uma postura desafiadora. O rockabilly - uma fusão de rhythm'n blues, música rural branca e pop - demonstrou ser um ritmo quente demais para os anos 50. Elvis partiu para novos territórios, foi atropelado pelo "conceito" publicitário (fundamental para o mecanismo do universo rock) e daí ascendeu aos céus.
As origens
Mas vamos falar sem mistificação. O que significa dizer que Elvis é o "Rei" do rock'n roll? Nada. O certo é que há imperadores - Elvis, Jerry Lee Lewis e Bill Haley, todos brancos - e uma "Profana Família" - Chuck Berry, Bo Diddley e Little Richard - negra. Ou seja, um apartheid, traduzido pela visão da maioria, impulsionada pela mídia, de que o rock é coisa de brancos. Não é.
A visão estabelecida é a de que o rhythm'n blues seguiu seu sorridente caminho até 56, quando, graças principalmente ao dito "Rei", o rock'n roll surgiu por magia, desenvolvendo-se a seguir em rock. O rock'n roll veio realmente depois do r&b. Mas não por causa de Elvis ou mesmo do ubíquo Tom Parker, e sim pela eletricidade. Chuck Berry eletrificou os ritmos do acústico Blind Lemon Jefferson e Bo Diddley urbanizou o blues rural de Leadbelly. Ou seja, no princípio, Elvis e Jerry Lee Lewis pegaram o bonde já andando.
Restabelecendo a verdade, conclui-se que por origem, ritmo, clima e produto o bebê rock'n roll foi mesmo um negrinho, para consternação dos racistas de qualquer época. Quando chegou a adolescência, desabou-lhe em cima a tecnologia (o estúdio e suas técnicas, as ramificações da eletricidade) e o capital (finanças e marketing) da classe dominante branca, anglo-saxã e protestante. O rock (branco) foi fundamentalmente uma criação do Capital. Os criadores de mitos concordaram: "A Batida" era um mercado muito criativo. Além disso, não poderiam vender Little Richard, ainda por cima maquiado e de peruca, para o público branco. Precisavam de figuras "aceitáveis". Até Elvis, no início, assustava muita gente. Inventaram Pat Boone. Coisa de americanos.
AP |
Elvis Presley morreu em 16 de agosto de 1977 |
Com o lançamento pela RCA, esta semana, de 19 LPs antológicos da carreira de Elvis, podemos (voltar a) acompanhar todas as fases do processo, e além. Há muito tempo esses discos não podiam ser encontrados no Brasil. Eles recapitulam os primeiros dez anos da carreira de Elvis (com exceção das sessões de gravação na Sun Records), vão do rockabilly às baladas compostas na hora, em estúdio, para encher vinil, passando pelos clássicos de fúria e tensão, as trilhas sonoras de muitos dos filmes e chegando ao álbum duplo do filme Elvis, o Ídolo Imortal, a ser lançado brevemente, com gravações inéditas de Shake, rattle and roll, Heartbreak Hotel, Hound Dog, Too much monkey business e trechos de entrevistas.
A energia
Elvis declarou em 1962, num intervalo de filmagem, que "quando você se envolve neste, ahn, negócio... sua vida é pública, não é mais sua". É no mínimo irônico que ele tenha feito essa declaração em um estúdio, cenário de inúmeras decisões erradas na sua carreira (decisões que foi obrigado a tomar). Elvis terminou caindo na armadilha do seu próprio filme, um épico religioso com roteiro de horror classe B. Neste Fausto para sulistas dos EUA, o "Rei" inclusive mudou um de seus sobrenomes, para Aaron, invocando proteção bíblica. E como em todas as boas histórias de mortos que não morrem, o filme continuou à solta depois que o herói foi para a tumba.
Ouvindo os discos recém-lançados, ainda trememos com Heartbreak Hotel ou Blue Suede Shoes. Mas depois já começamos a perceber a descida pelo redemoinho nos LPs que cobrem os "anos de cinema". Porque depois de Balada Sangrenta e Jailhouse Rock, os filmes de Elvis ficaram mais sonolentos do que as novelas da Globo. Nesta época, Elvis só cantava odisséias de cilada e salvação, ou meras inconseqüências.
No excepcional álbum da trilha sonora de Elvis, o Ídolo Imortal, podemos voltar a sentir toda a energia que passou anos oculta nas sombras. Na maioria das performances, especialmente nas baladas, ele soa como um prisioneiro (talvez de seu próprio truque) ao qual tenha sido permitido andar pelas ruas da cidade durante alguns minutos, antes de voltar à solitária. Parece saborear cada inflexão com uma intensidade que nos impressiona profundamente. Talvez ele não tenha feito nenhum disco consistente e eletrizante desde o seu Elvis is Back (está no pacote da RCA), lançado depois que voltou do Exército. Mas ele não era um tigre qualquer ("Sou o Rei da Selva/ me chamam de Homem-Tigre", cuspia ele em Tiger Man), e, convenhamos, é um longo caminho de Tupelo, Mississipi, ao inferno. Ou ao céu.
A essência
Quando Elvis morreu, no alucinado ano de 1977, há quase 5 anos, caíam todos os tabus musicais e nascia o golpe de estado punk. O Clash proclamava: "Nada de Beatles, Stones ou Elvis". Tradução: a música desses deuses olímpicos não era mais capaz de manter a infância perdida em todos aqueles já a caminho dos 30 e além na longa e tortuosa estrada. O rock deveria ficar livre para ser refeito pelas gerações mais jovens. Exatamente como nos ritos de passagem ancestrais. Surgia um novo Elvis (Costello), com outro universo, o da época: frustrações, raivas mesquinhas, desejo de vingança, flertes autodestrutivos, vontade de dominação. Uma reencarnação dos "angry young men" sob uma música crispada, no limite da ruptura, como se progredisse no fio da navalha, à beira do abismo.
Enquanto Elvis viveu e criou, ele foi a própria essência e pureza do rock. A própria realização do que Artaud denominava "Teatro da Crueldade": um espetáculo de gritos e gestos abstratos que, no limite, não precisa de palavras e significação consciente. Não vai à nossa cabeça, mas aos sentidos. Uma cerimônia primitiva entre civilizados, que mexe com nosso corpo e suas banhas de censura social e educação, com o que resta de mágico e incorruptível na nossa personalidade. Elvis foi um dos magos dessa missa negra, desse teatro das sombras que por uma ação forte, cruel e expressiva, estilhaça todas as regras, permitindo que se libere o que não é dito e se recomponha a nossa unidade partida.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u477594.shtml
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