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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Sexo, Traumas e Rock 'n Roll

Sexo, Traumas e Rock 'n Roll
O jornalista inglês Philip Norman escreveu a biografia definitiva de John Lennon. Para esclarecer a mente e a genialidade do artista, ele investigou a fundo pontos polêmicos de sua trajetória - a vida familiar, a dificuldade em lidar com o sucesso e as suspeitas de homossexualismo

Por José Flávio Júnior

o Até que ponto a dualidade de John Lennon e Paul McCartney se manteve em suas carreiras solo? Ouça no podcast com José Flávio Junior

Existe um critério infalível para avaliar uma biografia. Se agrada a todos - inclusive o biografado -, com certeza é ruim. Se irrita muita gente, tem grandes chances de ser boa. Em 2003, o jornalista inglês Philip Norman procurou a artista plástica Yoko Ono com o objetivo de escrever um livro sobre John Lennon. Tinha credenciais para isso: Norman é o autor da melhor biografia já lançada sobre os Beatles, Shout!: The Beatles in Their Generation, publicada em 1981. Yoko topou ajudar, cedendo entrevistas e contatos. Norman então foi atrás de Paul McCartney, de outros familiares, de amigos de infância, de integrantes do entourage dos Beatles... Mas, se em princípio Norman contou com a colaboração da viúva e de Paul (que respondeu a várias perguntas por e-mail), quando o livro ficou pronto ambos decidiram retirar o apoio. Yoko acusou Norman de ter sido muito malvado com Lennon - embora não tenha encontrado nenhuma informação incorreta
que abrisse a possibilidade de processar o jornalista. Sinal inequívoco de algo que se confirma com a leitura do livro: John Lennon, previsto para chegar às livrarias brasileiras em março, é uma obra espetacular, a biografia definitiva do mais brilhante e controvertido dos Beatles.

O livro irritou Yoko e Paul pela mesma razão que deslumbrará os interessados em cultura pop em geral e os fãs dos Beatles em particular: ele vasculha a fundo a vida e a mente de um dos maiores mitos da segunda metade do século 20. Todas as informações são checadas, não há o mínimo indício de sensacionalismo, e tudo o que é contado nas 851 páginas do livro é relevante para entender a complexa personalidade de John Lennon. O cantor e compositor nasceu num lar conturbado - e nunca nenhum biógrafo esmiuçou com tanto detalhe a vida familiar de Lennon. Um homem que, já adulto, admitiu para amigos ter chegado perto de fazer sexo com a própria mãe na adolescência. Para entender a mente de Lennon, é fundamental compreender sua complexa sexualidade - e Norman investigou o boato de que o cantor teria tido relações homoeróticas com o empresário Brian Epstein, gay assumido, e também a possível tensão libidinosa entre ele e o parceiro
Paul McCartney.

Tendo como base a vasta pesquisa feita para o livro, é possível analisar John Lennon de acordo com os relacionamentos que ele tinha com seus familiares (a mãe, Julia, a tia Mimi, o pai, Alfred), com seus amigos íntimos (Brian Epstein e o baixista Stuart Sutcliffe, o Stu), com suas mulheres (as esposas Cynthia e Yoko e as fãs) e com os outros três rapazes de Liverpool (Paul, George e Ringo). Foi essa soma de experiências que formou um dos maiores compositores da história da música pop, líder do grupo de rock que elevou o gênero, então marginalizado, à condição de arte.

John e a família
O pequeno John Winston Lennon cresceu num subúrbio da cinzenta cidade britânica de Liverpool após o fim da Segunda Guerra. Seu pai, Alfred Lennon, então conhecido como Alf (depois ele mudaria para Freddie, também apelido para Alf), trabalhava como mercador marítimo e passava longas temporadas fora de casa. Numa dessas longas ausências, sua mulher, Julia, engravidou de um soldado galês. Para o marido, Julia alegou ter sido violentada. O soldado negou o estupro, e o episódio levou à separação do casal. Em seu retorno seguinte a Liverpool, Alf encontrou Julia já vivendo com outra pessoa (Bobby Dykins, um garçom de hotel) e decidiu que cuidaria da criação do filho John. Só não avisou isso para ninguém.

O primeiro episódio marcante da vida de John Lennon foi uma espécie de sequestro. Com a desculpa de levar o filho para comprar roupas, Alf foi com ele para a cidade de Blackpool, onde morava um de seus amigos marinheiros. Lá eles permaneceram por três semanas, enquanto Alf burilava o plano de emigrar com o rebento para a Nova Zelândia. Julia acabou localizando o ex-marido e descobrindo seu plano. Segundo a biografia, ela chegou a aceitar a ideia de o filho ser criado na Nova Zelândia pelo pai. Mas Alf quis saber do próprio John, então com 6 anos, com quem ele gostaria de ficar. O menino escolheu o pai, mas, quando viu a mãe indo embora, correu atrás dela, gritando para que o pai viesse junto. John só voltaria a ter notícias de Alf após o estouro dos Beatles.

Impedida de ter filhos por vias naturais, a irmã mais velha de Julia, Mary Elizabeth Smith, a Mimi, pediu para criar John. Ela não acreditava que a irmã fosse capaz de dar uma boa educação para a criança. Enfermeira casada com o leiteiro George, Mimi cuidou de John como se fora sua própria cria, apesar de ele encontrar Julia regularmente e chamá-la de mãe. Com Bobby Dykins (que John odiava), Julia teve outras duas filhas (o fruto do "estupro" acabou sendo adotado por um casal norueguês). John achava a situação estranha, mas tinha um ótimo relacionamento com a rígida e afetuosa Mimi e também com o tio George. Aos 15 anos, quando recebeu a notícia da morte do tio, vítima de uma hemorragia no fígado, John se sentiu perdendo o pai pela segunda vez.

Mas nada se compara à dor que ele sentiu quando, três anos depois, a mãe foi atropelada por um policial alcoolizado. John tinha verdadeiro fascínio pela mãe. Era a única pessoa com dotes musicais na família. Ela cantava e tocava banjo. Ensinou os primeiros acordes do instrumento para o filho, que, conhecendo apenas o básico, montou o grupo The Quarrymen, com alguns amigos do colégio Quarry Bank. Ele necessitava do incentivo materno para seguir a carreira artística - Mimi dizia que fazer música não o levaria a lugar nenhum, além de ter o hábito de jogar suas poesias e desenhos no lixo.

O que mais revoltou John foi o fato de que, quando Julia morreu, ele se entendia cada vez melhor com ela. Os dois estavam cada vez mais íntimos. Dez anos mais tarde, já apaixonado por Yoko Ono, John fez uma confissão chocante. Ele se arrependia de nunca ter feito sexo com a mãe. Quando John era adolescente, costumava deitar com a mãe para descansar. Em determinada ocasião, ele teria encostado o braço no seio dela e sentido que, se avançasse, algo poderia acontecer. Ao ouvir o relato, Yoko sensatamente achou que John precisava de terapia. O casal chegou a Arthur Janov, que desenvolveu a terapia do grito primal e fez fama e dinheiro nos anos 70.

O tratamento foi fundamental para a criação de uma das obras mais impactantes da carreira de Lennon, seu primeiro álbum solo, John Lennon/Plastic Ono Band, de 1970. Ele já tinha escrito sobre a mãe (a delicada Julia aparecera no Álbum Branco, dos Beatles), mas não como na nova canção, Mother. Na letra, John finalmente se despedia dela, não sem antes dizer umas verdades: "Mãe, você me teve/ Mas eu nunca tive você/ Eu queria você/ Mas você não me queria".

A faixa também abordava seu relacionamento com o pai. Os Beatles tinham acabado de estourar quando Alf reapareceu; seu surgimento, segundo os tabloides, não poderia soar mais oportunista. Com o passar dos anos, John foi restabelecendo contato com o pai, chegando até a hospedá-lo por um longo período em sua mansão. Mas no aniversário de 30 anos de John, logo após o tratamento com Janov, pai e filho tiveram uma conversa que findou o relacionamento. Enfurecido, John jogou na cara de Freddie toda a angústia que sentira desde a infância por não ter um pai presente. Pediu-lhe que não o procurasse mais e devolvesse a casa que tinha recebido de presente, além de descrever em detalhes como atiraria o pai ao mar se este voltasse a importuná-lo. Freddie acatou as ordens, morrendo de medo - apesar de ter trabalhado no mar por anos e anos, não havia aprendido a nadar.

John e Paul
(e George e Ringo)
Um ano e meio mais novo do que John, Paul McCartney começou a amizade com Lennon por causa da música. O histórico familiar de John nada tinha a ver com o de Paul. O temperamento de ambos também tinha pouca similaridade. Tanto que até hoje John é visto como o beatle rebelde, e Paul, como o beatle bonzinho. Ao longo da biografia de Philip Norman, Paul é descrito como o mel e John, como o vinagre. A verdade é que esse casamento artístico foi perfeito enquanto durou. E, como não poderia deixar de ser, resultou num divórcio dolorido.

John já era o líder do Quarrymen quando Paul foi convidado para participar do grupo. Quando a brincadeira de colégio evoluiu e virou Beatles, John continuou achando que era o líder. E foi assim até o fim da banda. Mas, se a princípio eles compunham juntos, na segunda metade da década de 1960 começaram a se distanciar como autores, apesar de as canções sempre saírem creditadas como Lennon-McCartney. Houve até um período de dois anos em que todas as músicas lançadas como compactos pelos Beatles eram de autoria de Paul. Era como se John tivesse perdido a liderança dentro do grupo. Paul passou, cada vez mais, a ser o responsável pelas músicas redondinhas e comerciais, como Hello, Goodbye e Let It Be. John vinha com as complexas, como Tomorrow Never Knows e Strawberry Fields Forever.

George Harrison foi levado para os Beatles por Paul. Inicialmente, John mal conversava com George, já que o novo integrante da banda tinha dois anos e meio a menos. John só passou a ficar íntimo de George quando os dois começaram a tomar ácido lisérgico, o LSD. A iniciação dos Beatles nas drogas aconteceu quando eles conheceram Bob Dylan em Nova York. O cantor americano apresentou os quatro ingleses à maconha. John e Ringo deram tanta gargalhada na primeira experiência sob o efeito da cannabis, que desde então, quando os Beatles queriam fumar, o código era "vamos dar umas risadas?". O LSD chegou logo depois, e George foi o parceiro mais constante de John nas viagens lisérgicas. Quando os Beatles rumaram para a Índia para estudar meditação com o guru Maharishi Mahesh Yogi, John e George foram os que conseguiram permanecer mais tempo no retiro espiritual. O único entrevero sério entre eles ocorreu quando Yoko Ono foi convidada a
participar da gravação do Álbum Branco. Apesar de toda a sua espiritualidade e calma, George foi o único que teve coragem de peitar a japonesa. "O Bob Dylan e outros amigos meus disseram que você tem uma reputação horrível em Nova York e que você traz vibrações negativas", teria dito para a intrusa. John morreu sem entender por que não desceu a mão em George naquele dia.

Com Ringo a relação de John sempre foi de total carinho e admiração. Tanto que os dois seguiram tocando juntos nos anos 70. Mas com Ringo todo mundo se dava bem. No auge dos Beatles, Ringo, George e John foram morar no campo, em mansões próximas. O único que permaneceu em Londres o tempo todo foi Paul. Em pelo menos duas ocasiões, John ficou muito irritado com seu parceiro. A primeira foi quando Paul assumiu numa revista já ter usado LSD. John, que nessa época praticamente almoçava e jantava ácido lisérgico, ficou com inveja de não ter sido ele o beatle a ser associado com a droga. A outra vez foi no fim da banda. John já havia avisado internamente que não ficaria mais nos Beatles, mas foi convencido a não falar nada para não derrubar as vendas do disco Abbey Road. Então Paul apareceu com seu primeiro LP solo dizendo que não via mais os Beatles gravando algo. "Fui um trouxa por não ter anunciado o fim dos Beatles. Aí o Paul foi lá
e fez, e para promover o disco dele", John declarou.

Yoko sempre desconfiou que os sentimentos de John por Paul eram mais fortes do que o mundo podia imaginar. Por conta de comentários que ele fazia, Yoko chegou a achar que houve um momento, no começo da vida adulta, em que John quis ter um caso com Paul. Mas isso nunca teria acontecido por Paul ser um heterossexual convicto.

John e os Amigos
O baixista Stu Sutcliffe, o Stu, foi o melhor amigo de John na faculdade de artes de Liverpool. Os dois adoravam literatura, gostavam de desenhar e se sentiam estimulados um pelo outro. A identificação era tanta que John o convidou para tocar baixo nos Beatles. Ele tinha pouca intimidade com o instrumento, mas era bonito, algo importante numa banda de rock. Stu tocou em Hamburgo, na famosa turnê inicial da banda. Acabou se apaixonando pela fotógrafa alemã Astrid e ficando por lá até a súbita morte, aos 21 anos, de hemorragia cerebral.

Segundo exames, Stu teria sofrido um trauma na cabeça que acabou ocasionando sua morte. Pauline, sua irmã mais jovem, escreveu um livro de memórias relatando um episódio em que John teria dado um chute na cabeça de Stu. Paul, aliás, teria socorrido Stu após o golpe. Philip Norman ouviu Paul sobre o episódio, e o ex-beatle afirmou que tal passagem nunca teria acontecido. Já a história de que Stu havia sido agredido por um grupo de vândalos no camarim de um show dos Beatles em 1961 tem várias testemunhas. Sua morte pode ter decorrido daí.

John ficou arrasado com a perda. "Eu me espelhava no Stu. Precisava dele para que ele me dissesse a verdade", chegou a afirmar. Tudo o que Stu produzia - desenhos, poemas, fotos -, John colava em seu quarto. São também muitas as especulações sobre um romance entre os dois na adolescência.

Outro homem importante na vida de John foi Brian Epstein, o empresário que ajudou a projetar os Beatles e que nunca teve substituto. O competente e dedicado Epstein era gay. E completamente apaixonado por John. Nem por isso John era delicado com o empresário. Quando convidaram Epstein a escrever sua autobiografia, John sugeriu que o nome fosse "Judeu Afeminado". Mas ser tratado dessa maneira não diminuía o fascínio de Epstein pelo líder dos Beatles. A história mais curiosa entre os dois ocorreu em abril de 1963, quando John resolveu passar uma temporada de dez dias na Espanha com Epstein.

Ninguém sabe ao certo o que se passou durante a viagem. John chegou a fazer piadas sobre ter efetivamente feito sexo com o empresário. Mas no aniversário de 21 anos de Paul McCartney, um DJ do Cavern Club (casa noturna de Liverpool que catapultou os Beatles para o estrelato) chamado Bob Wooler resolveu tocar no assunto. Perguntou para John o que havia rolado na "lua-de-mel" espanhola com Epstein. A resposta do beatle foi uma sequência de socos que quase levou o DJ à morte. Anos depois, fazendo a terapia do grito primal, John teria dito que o encontro físico com o empresário fora algo insignificante, além de admitir sentir imensa culpa por tê-lo tratado tão mal durante o tempo em que trabalharam juntos. Epstein morreu aos 32 anos, de overdose acidental de comprimidos contra insônia.

John e as mulheres
O relacionamento entre John e a primeira mulher, Cynthia, durou quase toda a trajetória dos Beatles. Os dois se casaram quando ela engravidou de Julian, em 1962. Por um tempo, ela foi escondida para não estragar os planos de marketing de Brian Epstein. O empresário achava que os integrantes dos Beatles tinham de passar a imagem de solteirões, que poderiam ficar com as fãs a qualquer instante. E John ficava. O casamento nunca o impediu de namorar as fãs.

No livro de Norman é descrita uma cena numa festa da cantora Cilla Black, em 1967, que ilustra bem o relacionamento entre eles. A reunião na casa da cantora servia para comemorar a primeira participação de John Lennon num filme sem os Beatles. Um dos presentes na festa contou para a anfitriã que Cynthia estava escondida no armário do seu quarto. Cilla subiu as escadas e atestou que aquilo era verdade. Ao ser indagada sobre o motivo da atitude, Cynthia respondeu que queria ver quanto tempo demoraria para John dar conta do sumiço dela. A cantora, que também era empresariada por Epstein e conhecia John de longa data, foi cruel na resposta: "É melhor você aceitar: ele nunca vai te procurar".

A falta de atenção de John com Cynthia virou obsessão por Yoko. Assim que se conheceram, numa exposição dela, sentiram-se profundamente atraídos. A paixão avassaladora tomou forma em 1968, ano em que os Beatles gravaram o Álbum Branco. O ciúme de John era tão doentio que ele fez Yoko - sete anos mais velha, vinda de dois divórcios, e mãe de Kyoko - listar todos os homens com quem ela já tinha dormido. O círculo de amigos de Yoko diminuiu consideravelmente por causa desse ciúme. E John passou a levá-la a todos os seus compromissos.

Em meados dos anos 70, a relação entre eles esfriou e John viajou para a Califórnia com a secretária May Pang (por sugestão de Yoko), nos 18 meses que ficaram conhecidos como "o fim de semana perdido". Terminada a aventura, o casal reatou e viveu os cinco anos mais pacíficos de seu relacionamento. Após dois abortos naturais, Yoko conseguiu engravidar de Sean. John estava feliz com a criança, curtindo Yoko de novo, em paz com Paul depois de trocas de farpas que se seguiram ao fim dos Beatles e empolgado com sua música. Até que um infeliz o assassinou em Nova York e o transformou numa lenda maior do que até então já era.

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