Davi resolveu ainda criança que gostava dessa coisa de música, mais ou menos na mesma época em que descobriu que não poderia se dedicar a ela. Seu pai era policial, a mãe, costureira - e, para ajudar em casa, o garoto foi trabalhar vendendo e fabricando sapatos. A música, no entanto, deu um jeito; e, aos 17 anos, colocou um violoncelo à sua frente. Pouco depois, um acidente - e seu instrumento foi danificado. Com um garfo de cozinha, fez os reparos necessários. Voltou a tocar; hoje, com 25 anos, integra a Sinfônica 2 de Julho - e está se especializando em concertos e consertos de instrumentos. É o luthier da orquestra. "Ainda não, tô aprendendo, mas vou ser, tenho certeza", diz.
Na tarde quente da sexta-feira, dia 5 de março, em Salvador, Davi divide o palco do Teatro Castro Alves com cerca de 80 colegas músicos. Todos têm entre 7 e 25 anos e se preparam, sob a batuta do pianista e maestro Ricardo Castro, para o concerto de abertura da temporada da orquestra, que seria realizado naquela noite. Apresentação de gala, com entrada franca para o público que, desde 2008, tem acompanhado de perto o grupo, menina dos olhos do Neojibá - Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia.
O conceito é simples - espalhar por todo o Estado conjuntos sinfônicos; fazer da música instrumento de transformação social; e, de quebra, revelar talentos que poderiam passar desapercebidos, sem oportunidade de desenvolvimento artístico. "Os meninos vão chegando e, aos poucos, a gente percebe que pode surgir a qualquer instante um monstrinho entre eles", diz Castro, idealizador do projeto. "E isso faz com que muitos colegas queiram vir a Salvador trabalhar com os meninos. Esta semana mesmo o spalla da Osesp, Emanuelle Baldini, esteve aqui." O telefone de Castro toca. Parecia até combinação. Era Baldini, dizendo que gostaria de tocar à noite com a orquestra. O maestro liga para casa. "Baldini quer tocar. Arranja uma camisa preta para ele? Não tem? Então pega aquela minha grande, azul marinho, deve servir."
Os monstrinhos. Castro conversa com o Estado depois do ensaio de pouco mais de três horas com os músicos. Sem intervalo, tocaram a Quinta Sinfonia, de Beethoven, Sensemayaá, de Silvestre Revueltas, e a Rapsody in Blue, de Gershwin. "Não dá para fazer concessões. É trabalho duro, bem direcionado."
"A gente às vezes até fica surpreso quando percebe o que somos capazes de fazer", diz Paula Grazielli, trompista de 18 anos. Ela, na verdade, queria tocar flauta; mas quando entrou no curso livre da Universidade Federal da Bahia, não tinha vaga. "Nem sabia o que era trompa, mas acabei começando", conta. Já Abner da Silva Pinto, de 16 anos, chegou ao fagote "um pouco" por sugestão do pai, que toca tuba. É o mais quietão do grupo, mas solta uma risada quando fala do estranhamento que o instrumento provoca nos colegas de escola. "Eu falo que toco fagote, mas eles perguntam se eu toco pagode."
Uma das mascotes da turma, Érica Smetak, fala até de um certo preconceito. Estuda música desde os 4 anos e, hoje, com 11, é oboísta da orquestra. Mas Paula acha que o problema é falta de conhecimento mesmo. "Eles não sabem que existe, este é o problema", diz. E Érica completa. "É por isso que eu fico tentando trazer os amigos para cá."
Nada disso, no entanto, parece incomodar essa garotada. O negócio deles, afinal, é subir no palco e tocar. Ao lado de Paula, durante o ensaio, está um outro trompista, "com cara de gringo", Craig Hubbard, de 20 anos. Americano, aluno da Juilliard School de Nova York, conheceu Castro na Suíça e a convite dele veio para a Bahia conhecer e trabalhar por duas semanas no Neojibá. "É um choque", ele diz. "A gente vive nos EUA em um clima de competição e, de repente, chego aqui e encontro não só gente talentosa mas, principalmente, que não perdeu o prazer de tocar."
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