A troco de nada e em nome de coisa nenhuma, nós, brasileiros, que no geral mal sabemos escrever, agora seremos obrigados a correr inutilmente o risco de redigir ainda pior.
Por Zeca Martins
Tô P!
PQP! Esse novo acordo ortográfico dos países lusófonos avacalhou geral.
Primeiro, porque lusófonos já é palavra suficientemente feia, você não concorda?
Vinícius de Morais, eterno defensor da beleza, certamente a desaprovava. Não duvido que ele jamais a tenha pronunciado em suas andanças noctívagas pelos bares do Leme ao Leblon.
Se alguém me chamar de lusófono, ainda que eu o seja, juro que saio no braço. Sinceramente, leitor: você faria acordo com alguma coisa lusófona sem um certo receio de má fama?
– Vi Fulano andando com um lusófono.
– Hum… faz tempo que eu já desconfiava…
Depois – e principalmente –, porque desde a eleição do Lula, com seu absoluto desprezo às letras e irrestrito desdém ao conhecimento, com o tal acordo estou para ver tamanho triunfo das nulidades (ao falar em ver triunfar as nulidades, desta vez quem suspirou no túmulo foi Rui Barbosa… nulidades, lulidades… hã, hã?)
Voltando à orto-catástrofe, pra quê, por exemplo, matar o trema? O prestimoso sinal nos alertava para os casos onde se exigia a pronúncia da letra u, esta, sim, uma pobre coitada não raro vítima do prepotente q, que, quando pode, faz calar sua boca. O u deve ser uma letra muito sofrida. Em determinados casos salvava-lhe o trema, que, dedo em riste, proclamava: “aqui o q não manda coisa nenhuma, é território soberano do u! Exijo que o u seja respeitado como merece! Pronunciem-no, pois!”
O trema era um sujeito firme e de bom caráter. Sem sua ajuda, o leitor terá de se virar sozinho para descobrir quando o u deve ser pronunciado em que/qui/gue/gui (para que o leitor tenha certeza da minha intenção em relação à pronúncia do u, devo informar que escrevi cuê, cuí, gu-ê, gu-í. Lamentável…).
– Mas em nome estrangeiro o trema fica!
– Ah, tá! Ele deve ter adorado continuar na Bündchen da Gisele.
E o que dizer, então, do frio assassinato do acento diferencial? Já vou avisando aos politicamente corretos, sempre tão míopes, que acentos diferenciais não pregam nenhum tipo de discriminação entre quem quer que seja. Ao contrário, ao apontarem as diferenças, trazem à tona as qualidades intrínsecas de cada um e cada coisa, valorizando todos.
Mas veja a leitora ou o leitor que ridícula a frase “O automóvel para para não bater no caminhão”. Vá explicar a um estudante que os dois para são coisas completamente diferentes. Que um é preposição, o outro é verbo.
– O que é verbo, fessô?, perguntaria algum aluno dessas faculdades de fino trato que ultimamente o MEC autorizou pipocaram à farta por aí.
Não bastasse, nossos brilhantes e atarefados tomadores de chá, folgada e eternamente assentados na Academia, atrapalharam-se com as letras e, em lugar de mexerem o traseiro no assento (com ss), resolveram fazê-lo nos acentos (com c) agudo e circunflexo.
No agudo:
– Manhê, lá na escola tava escrito Coreia num cartaz. Será que esqueceram de um r no nome do seu Correia, o bedel?
– Não, filho! Isso deve ser coisa de algum bedel mental…
E o circunflexo, então? Agora, como diferencial, só será mantido no plural dos verbos ter e vir, o que vai deixar muito redator com um certo enjoo descircunflexado.
Bem, também tem o hífen, que, é claro, não poderia faltar. Pois o tal desacordo chatográfico-lusófono (alerto insistentemente ao leitor que evite a companhia da palavra) conseguiu a rara proeza de trocar seis por meia dúzia, substituindo umas regrinhas bobocas por outras, babacas.
Porém o estrago já foi feito.
Esqueceram-se os acadêmicos, e provavelmente nunca se deram conta as nossas autoridades, que o que diferencia a língua portuguesa das outras do mundo ocidental, inclusive as demais latinas, é sua riqueza incomparável, monumental, sua incrível capacidade de ser sutil, bela, harmônica, maleável, e, ao mesmo tempo, duramente exigente com quem não a conhece minimamente, com quem não a trata com o devido zelo.
Pois é. Os tais acadêmicos, daqui e d’além-mar, até conseguiram lá seus quinze minutos de fama, mas só fizeram papel de macaco em loja de cristais. Aposto um vintém como Fernando Pessoa teria torcido o nariz.
A troco de nada e em nome de coisa nenhuma, nós, brasileiros, que no geral mal sabemos escrever, porque na vida escolar não nos foi dado ler com a abundância recomendável, agora seremos obrigados a correr inutilmente o risco de redigir ainda pior.
Editoras deverão reeditar incontáveis títulos; e engana-se quem acredita que terão lucro estrondoso com isso. Toneladas literais de livros estocados em distribuidores e livrarias tornam-se doravante, por decreto, envelhecidos, desatualizados, refugo. Imagina o leitor quanto custa reeditar um dicionário? E que fazer com meu Aurélio, meu Houaiss? Meus Deus! Jogo-os no lixo? Além da vaca, irão também para o brejo, meus dicionários de etimologia, de citações e o de questões vernáculas, do mestre Napoleão Mendes de Almeida?
As redações de jornais, no afã noticioso, verão aumentados seus escorregões ortográficos e pedidos públicos de desculpas nas colunas “erramos”. Vivo fosse, lá iria o simpático e atencioso Eduardo Martins, pacientemente, revisar seu Manual de Redação e Estilo do Estadão, alertando editores e repórteres sobre os novos riscos de escrever.
E dos professores, sobretudo os da rede pública nos ensinos fundamental e médio, exigir-se-á, mais uma vez, esforço incompatível com seus magros rendimentos – e inexistentes investimentos em atualização pedagógica.
A língua é viva e é do povo. Há séculos o idioma escolheu naturalmente um caminho aqui no Brasil, miscigenando-se com as culturas negra e indígena, e deixando-se também influenciar por culturas européias e orientais. Escolheu outro em Portugal, e outros ainda nos demais países que o empregam na África e na Ásia.
Um puto em Angola é um menino pequeno, no Brasil será outras coisas. Não usamos peúgas por aqui, embora não andemos descalços. Portugueses não entram em filas, mas atrás de bichas, ato que, convenhamos, no Brasil leva às mais constrangedoras interpretações. E sabe Deus a quais influências terá sido exposto o português falado em Macau, Goa, Damão e Timor?
E, de resto, que sabemos nós, brasileiros, verdadeiramente sobre São Tomé e Príncipe, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde? Bem, de Cabo Verde temos algum conhecimento da boa música de Cesária Évora. Basicamente, não muito mais que isso!
Os idiomas falados nos tais países lusófonos não são, definitivamente, mesma coisa, mesma pessoa; são mais como irmãos: filhos dos mesmos pais, ainda assim diferentes em suas caras, personalidades e histórias de vida.
“O ser humano é sempre o mesmo, mas em todo lugar ele é sempre diferente”. O que disse Pessoa sobre as gentes vale obrigatoriamente para seus idiomas.
Minha pátria é minha língua. A miscigenação dos povos modifica minha cultura nacional; com isso, os fonemas; com eles, a ortografia. Pessoalmente, advogo que já falamos o idioma brasileiro, mas isso é assunto para outro dedo de prosa.
Eta acordozinho inútil. Só servirá de incômodo cotidiano.
Arrogantemente, sob discutíveis argumentos de aproximação cultural e econômica de povos de idioma comum, os tais dotôres da língua e otoridades da lei – daqui e de lá – usurparam um poder que é dos povos (pois aqui não deveria valer a representatividade), e não fizeram bem algum à língua portuguesa, apenas deixaram-na com mais um pequeno ferimento.
À última flor do Lácio, indefesa, arrancou-se uma pétala. Mal-te-quer.
Por Zeca Martins
Tô P!
PQP! Esse novo acordo ortográfico dos países lusófonos avacalhou geral.
Primeiro, porque lusófonos já é palavra suficientemente feia, você não concorda?
Vinícius de Morais, eterno defensor da beleza, certamente a desaprovava. Não duvido que ele jamais a tenha pronunciado em suas andanças noctívagas pelos bares do Leme ao Leblon.
Se alguém me chamar de lusófono, ainda que eu o seja, juro que saio no braço. Sinceramente, leitor: você faria acordo com alguma coisa lusófona sem um certo receio de má fama?
– Vi Fulano andando com um lusófono.
– Hum… faz tempo que eu já desconfiava…
Depois – e principalmente –, porque desde a eleição do Lula, com seu absoluto desprezo às letras e irrestrito desdém ao conhecimento, com o tal acordo estou para ver tamanho triunfo das nulidades (ao falar em ver triunfar as nulidades, desta vez quem suspirou no túmulo foi Rui Barbosa… nulidades, lulidades… hã, hã?)
Voltando à orto-catástrofe, pra quê, por exemplo, matar o trema? O prestimoso sinal nos alertava para os casos onde se exigia a pronúncia da letra u, esta, sim, uma pobre coitada não raro vítima do prepotente q, que, quando pode, faz calar sua boca. O u deve ser uma letra muito sofrida. Em determinados casos salvava-lhe o trema, que, dedo em riste, proclamava: “aqui o q não manda coisa nenhuma, é território soberano do u! Exijo que o u seja respeitado como merece! Pronunciem-no, pois!”
O trema era um sujeito firme e de bom caráter. Sem sua ajuda, o leitor terá de se virar sozinho para descobrir quando o u deve ser pronunciado em que/qui/gue/gui (para que o leitor tenha certeza da minha intenção em relação à pronúncia do u, devo informar que escrevi cuê, cuí, gu-ê, gu-í. Lamentável…).
– Mas em nome estrangeiro o trema fica!
– Ah, tá! Ele deve ter adorado continuar na Bündchen da Gisele.
E o que dizer, então, do frio assassinato do acento diferencial? Já vou avisando aos politicamente corretos, sempre tão míopes, que acentos diferenciais não pregam nenhum tipo de discriminação entre quem quer que seja. Ao contrário, ao apontarem as diferenças, trazem à tona as qualidades intrínsecas de cada um e cada coisa, valorizando todos.
Mas veja a leitora ou o leitor que ridícula a frase “O automóvel para para não bater no caminhão”. Vá explicar a um estudante que os dois para são coisas completamente diferentes. Que um é preposição, o outro é verbo.
– O que é verbo, fessô?, perguntaria algum aluno dessas faculdades de fino trato que ultimamente o MEC autorizou pipocaram à farta por aí.
Não bastasse, nossos brilhantes e atarefados tomadores de chá, folgada e eternamente assentados na Academia, atrapalharam-se com as letras e, em lugar de mexerem o traseiro no assento (com ss), resolveram fazê-lo nos acentos (com c) agudo e circunflexo.
No agudo:
– Manhê, lá na escola tava escrito Coreia num cartaz. Será que esqueceram de um r no nome do seu Correia, o bedel?
– Não, filho! Isso deve ser coisa de algum bedel mental…
E o circunflexo, então? Agora, como diferencial, só será mantido no plural dos verbos ter e vir, o que vai deixar muito redator com um certo enjoo descircunflexado.
Bem, também tem o hífen, que, é claro, não poderia faltar. Pois o tal desacordo chatográfico-lusófono (alerto insistentemente ao leitor que evite a companhia da palavra) conseguiu a rara proeza de trocar seis por meia dúzia, substituindo umas regrinhas bobocas por outras, babacas.
Porém o estrago já foi feito.
Esqueceram-se os acadêmicos, e provavelmente nunca se deram conta as nossas autoridades, que o que diferencia a língua portuguesa das outras do mundo ocidental, inclusive as demais latinas, é sua riqueza incomparável, monumental, sua incrível capacidade de ser sutil, bela, harmônica, maleável, e, ao mesmo tempo, duramente exigente com quem não a conhece minimamente, com quem não a trata com o devido zelo.
Pois é. Os tais acadêmicos, daqui e d’além-mar, até conseguiram lá seus quinze minutos de fama, mas só fizeram papel de macaco em loja de cristais. Aposto um vintém como Fernando Pessoa teria torcido o nariz.
A troco de nada e em nome de coisa nenhuma, nós, brasileiros, que no geral mal sabemos escrever, porque na vida escolar não nos foi dado ler com a abundância recomendável, agora seremos obrigados a correr inutilmente o risco de redigir ainda pior.
Editoras deverão reeditar incontáveis títulos; e engana-se quem acredita que terão lucro estrondoso com isso. Toneladas literais de livros estocados em distribuidores e livrarias tornam-se doravante, por decreto, envelhecidos, desatualizados, refugo. Imagina o leitor quanto custa reeditar um dicionário? E que fazer com meu Aurélio, meu Houaiss? Meus Deus! Jogo-os no lixo? Além da vaca, irão também para o brejo, meus dicionários de etimologia, de citações e o de questões vernáculas, do mestre Napoleão Mendes de Almeida?
As redações de jornais, no afã noticioso, verão aumentados seus escorregões ortográficos e pedidos públicos de desculpas nas colunas “erramos”. Vivo fosse, lá iria o simpático e atencioso Eduardo Martins, pacientemente, revisar seu Manual de Redação e Estilo do Estadão, alertando editores e repórteres sobre os novos riscos de escrever.
E dos professores, sobretudo os da rede pública nos ensinos fundamental e médio, exigir-se-á, mais uma vez, esforço incompatível com seus magros rendimentos – e inexistentes investimentos em atualização pedagógica.
A língua é viva e é do povo. Há séculos o idioma escolheu naturalmente um caminho aqui no Brasil, miscigenando-se com as culturas negra e indígena, e deixando-se também influenciar por culturas européias e orientais. Escolheu outro em Portugal, e outros ainda nos demais países que o empregam na África e na Ásia.
Um puto em Angola é um menino pequeno, no Brasil será outras coisas. Não usamos peúgas por aqui, embora não andemos descalços. Portugueses não entram em filas, mas atrás de bichas, ato que, convenhamos, no Brasil leva às mais constrangedoras interpretações. E sabe Deus a quais influências terá sido exposto o português falado em Macau, Goa, Damão e Timor?
E, de resto, que sabemos nós, brasileiros, verdadeiramente sobre São Tomé e Príncipe, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde? Bem, de Cabo Verde temos algum conhecimento da boa música de Cesária Évora. Basicamente, não muito mais que isso!
Os idiomas falados nos tais países lusófonos não são, definitivamente, mesma coisa, mesma pessoa; são mais como irmãos: filhos dos mesmos pais, ainda assim diferentes em suas caras, personalidades e histórias de vida.
“O ser humano é sempre o mesmo, mas em todo lugar ele é sempre diferente”. O que disse Pessoa sobre as gentes vale obrigatoriamente para seus idiomas.
Minha pátria é minha língua. A miscigenação dos povos modifica minha cultura nacional; com isso, os fonemas; com eles, a ortografia. Pessoalmente, advogo que já falamos o idioma brasileiro, mas isso é assunto para outro dedo de prosa.
Eta acordozinho inútil. Só servirá de incômodo cotidiano.
Arrogantemente, sob discutíveis argumentos de aproximação cultural e econômica de povos de idioma comum, os tais dotôres da língua e otoridades da lei – daqui e de lá – usurparam um poder que é dos povos (pois aqui não deveria valer a representatividade), e não fizeram bem algum à língua portuguesa, apenas deixaram-na com mais um pequeno ferimento.
À última flor do Lácio, indefesa, arrancou-se uma pétala. Mal-te-quer.
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