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quarta-feira, 3 de março de 2010

Jovens que reinventam clássicos

Ao longo de duas décadas, mais de 600 artistas passaram pelas filas da Experimental de Repertório

Sentado no fundo da plateia do Teatro Municipal em obras, o maestro Jamil Maluf procura entre os músicos que ensaiam sobre o palco. "Ali, aquele violinista, de camiseta laranja", ele aponta. "Tem 14 anos, é o mais jovem do grupo." Sob regência de Mário Valério Zaccaro, os artistas interpretam a cantata Alexander Nevsky, de Prokofiev, o Coral Lírico soando acima da massa sonora produzida pela Orquestra Experimental de Repertório. Enquanto isso, ao lado do inspetor do grupo, Maluf conta: "Um violoncelo, dois violinos, uma viola. Nessa formação, são quatro os músicos que estão tocando pela primeira vez. Chegaram há uma semana. E tem mais gente vindo."

Corpo estável do Municipal, a Experimental de Repertório, formada por jovens músicos, está completando 20 anos de atividades. O concerto de abertura da temporada, no Teatro Bradesco, será domingo, sob regência de Zaccaro - Maluf, criador da orquestra e seu diretor musical e regente titular, volta ao pódio no dia 21, no concerto especial de aniversário na Sala São Paulo. Desde o fim do ano passado, no entanto, ele está envolvido com a recuperação da história do conjunto. Conversando com o Estado, ele relembra logo de cara alguns números. Em 20 anos, 610 músicos passaram pela orquestra; desses, 32 atuam hoje na Sinfônica do Estado de São Paulo; 46, na Sinfônica Municipal.

"Completamos 20 anos com motivos para comemorar e outros que não nos dão razão para celebração", diz Maluf, enquanto caminha pela Rua 7 de abril, nas imediações do Municipal. "Ver a lista de músicos que passaram pelos nossos naipes, e onde estão hoje, nos dá a sensação de que cumprimos bem o nosso primeiro objetivo, formar instrumentistas para as principais orquestras do País." A expressão no rosto torna-se, então, mais grave. "Ao mesmo tempo, tenho a sensação muito clara de que, se esta orquestra não tivesse sido criada por lei, já teria sido fechada há muito tempo."

O projeto da Experimental surgiu no final do anos 80, durante a gestão da prefeita Luiza Erundina, quando a filósofa Marilena Chauí ocupava a Secretaria Municipal de Cultura. "A ideia, desde então, foi abrir espaço para músicos pré-profissionais, proporcionar a eles experiência de prática orquestral, que seria fundamental para o desenvolvimento de suas carreiras. Ao lado do grande repertório, no entanto, era nosso objetivo experimentar no repertório. E por isso estreamos obras, fizemos óperas inéditas no Brasil, parcerias com grupos de teatro, sempre em busca de sabores musicais inusitados."

Os resultados foram aparecendo aos poucos - e um olhar sobre as últimas duas décadas de Municipal coloca a Experimental à frente de algumas das principais produções realizadas no teatro. No entanto, até cinco anos atrás, a orquestra não tinha nem mesmo uma sede e ensaiava em um espaço provisório no quartel da polícia militar, na Rua Santo Amaro. "Era constrangedor", diz Maluf. "Recebíamos um solista importante e, se começasse a chover, precisávamos interromper os ensaios pois a água paralisava o sistema elétrico. Além, claro, dos 14 pontos de goteira". Com a criação da Sala Olido em 2005, a orquestra se mudou para lá. Pouco antes, porém, durante o período em que foi secretário Municipal de Cultura, Emanoel Araújo estudou a possibilidade de extinguir a orquestra. "O que doía mais era saber que a sugestão vinha de colegas", diz Maluf. "O que estávamos fazendo de tão errado?" Pouco depos, Araújo não apenas voltou atrás da decisão como escolheu Maluf como diretor artístico do Municipal, cargo que ele deixou no final do ano passado.

Mercardo em crescimento

De volta ao palco do Municipal, o terceiro movimento da Quinta Sinfonia de Beethoven ganha vida nas mãos de músicos de bermudas e camisetas regatas; vestidos decotados, braços tatuados; o percussionista com cabelo moicano. O maestro Zaccaro se detém sobre os violoncelos; em seguida, volta-se para os violinos. Desce do pódio e cochicha com um dos músicos. "Depois do intervalo, vamos tentar sem mascar chiclete? Você masca em um tempo e toca em outro, assim eu tô ficando confuso." Os colegas dão uma saborosa risada antes que a música volte a soar.

"Acho que hoje a importância dessa orquestra está mais clara para as pessoas. Recentemente abrimos vaga para um violinista e 80 músicos se candidataram, o que prova também o crescimento do mercado. Mas há ainda um preconceito por se tratar de um grupo de jovens. Sempre, no entanto, insisto que a cobrança não pode ser menor por conta disso: pré-profissional não é iniciante", diz Maluf, que tem fama de durão. "Mas nada disso abalou meu entusiasmo. Nos primeiros cinco minutos, fico uma fera, exagero na dose. Depois de dez minutos, já estou mais calmo. E preciso só de mais cinco para voltar ao normal", brinca. "Acho que é por isso que estou há 20 anos no cargo, mesmo sem ser efetivo do Municipal: continuo acreditando nessa orquestra e dando um jeito de fazer as coisas acontecerem."

Maluf diz não ter desistido de alguns planos antigos. O primeiro deles é tornar a orquestra mais conhecida fora de São Paulo. "A cidade recebe anualmente grupo de estudantes de todo o mundo e acho que podemos também pensar em tocar pelo Brasil, não há por que ficarmos restritos apenas a São Paulo, ainda que a cidade seja nossa base e nosso principal palco." Outra ideia é fazer a orquestra sediar um encontro anual em torno da música sinfônica, com jovens músicos, compositores, maestros e pesquisadores.

Os números, no entanto, não ajudam na conta. A Experimental entra em seu vigésimo-primeiro ano com 83 músicos. Cada um recebe uma bolsa de R$ 1 mil, o que leva a um orçamento anual final de pouco mais de R$ 1 milhão. Para a temporada, a verba vem a parte - e, no primeiro semestre, é de R$ 50 mil.

Eles Passaram pela Orquestra

DAVI GRATON: O violinista foi spalla da Experimental de Repertório e da Orquestra Sinfônica da USP. Hoje, é solista A do naipe de violinos da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo.

PEDRO GADELHA: É solista A da Osesp e, desde 1999, é membro da Orquestra da Ópera de Frankfurt. É professor da Joven Orquesta Nacional de España e da Escola Municipal de Música de São Paulo.

ARCÁDIO MINCZUK: Oboísta solista da Osesp, foi coordenador pedagógico do Festival de Campos do Jordão de 2004 a 2008. É professor do Instituto de Artes da Unesp e do Conservatório de Tatuí.

FERNANDO PORTARI: Um dos principais cantores líricos do Brasil, hoje desenvolvendo carreira na Alemanha, o tenor estreou em óperas em uma montagem de La Bohème com a Experimental.

PAULO SZOT: Às vésperas de sua estreia no Metropolitan Opera de Nova York, o barítono paulistano, que também integrava o elenco da ópera La Bohème, ganhou o Tony Awards em Nova York.

JORGE TAKLA: Após sua estreia em óperas com La Bohème, o diretor voltou a colaborar com a Experimental em montagem premiada de Os Contos de Hoffman, de Offenbach.

Fonte: Estadão - 26 de Fevereiro de 2010

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