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quarta-feira, 3 de março de 2010

A linguagem musical de Mahler

por Gabriel Engel (De Chord and Discord, vol. 1 no. 1)

Mais recentemente um crítico de jornal, num momento de revelação após a execução da "Nona" de Mahler em New York salientou que era lamentável que tão pouco houvesse sido escrito sobre o tratamento individual do compositor em relação a orquestra. Este analista percebeu, de repente, como pouquíssimos amantes da música, que o conteúdo de uma sinfonia está tão intrinsecamente interligado ás peculiaridades da linguagem da orquestra que faz com que seja absolutamente necessária alguma familiaridade com essas características determinantes para alcançar uma compreensão adequada da obra como um todo.

Mesmo os amigos mais prôximos de Mahler, pessoas da mais elevada cultura musical, ficavam freqüentemente espantados pela estranheza absoluta da sua atitude para com a arte. Ele ficava fora da área de um mercado rural, completamente fascinado pela babel de tons que saiam simultaneamente das gargantas humanas, realejos, carrosséis e uma fanfarra. Na confusão destes muitos sons misturados acidentalmente, ele alegava estar a essência da verdadeira polifonia, que é uma mistura de vozes independentes, cada uma cantando da maneira que melhor lhe convier.

Á luz deste fato, a orquestra sinfônica de Mahler é realmente uma comunidade de solistas independentes ajustados de maneira ideal, que desempenham, em uma peça sem palavras, diversos papéis musicais absolutos criados para eles por um compositor sírio cuja liberdade de expressão não reconhece qualquer limitação exceto aquelas impostas pela grande e humana alma da verdadeira arte. Paradoxal como isso possa parecer, as músicas de Mahler, modernas como possam ser, são tão simples e transparentes como aquelas de Mozart. Existe na sua música a total ausência daquele vício dominante, a colcha de retalhos das peças para obter aumento da riqueza do som orquestral. Onde outros compositores instintivamente se cercam de vozes dissonantes com alguns acompanhamentos harmônicos, Mahler recorre a extremos de sons ascúticos) deixando intencionalmente pontas discordantes pela exclusão de todas as outras. O coração da música, para ele, reside unicamente na polifonia melódica; e a fim de manter-se tão próximo a ela quanto possível, ele não hesita em enfrentar os perigos á sua popularidade, envolvidos em muitas surpresas desagradáveis das suas músicas "discordantes" para o ouvido mêdio. Não que a harmonia como influência básica esteja ausente da sua música. Ela está presente, porém a sua importância fica enormemente reduzida pelos gritos incessantes da "teia melôdica" intrincada, sobre a atenção da platêia. Mahler pede que no o ouçamos verticalmente, como são escritas as harmonias, mas horizontalmente, de acordo com o progresso das linhas do tema.

E estes são grandes temas, adequados á colossal estrutura das formas que ele escolhe. Grandes temas, embora talvez não no mesmo sentido simples, puro, austero que caracteriza os temas imortais das sinfonias clássicas do passado; porêm temas semelhantes a canções com alcance amplo e ousado, temas de riqueza sem precedentes em fantasia, e completamente livres dos grilhões de tríades agrupadas de acordo com fórmulas antiquadas de construção melódica. Acima de tudo, Mahler é o autor de sinfonias de "canções". Sua mais complicada polifonia só reflete em que grau sua alma é uma alma "cantante", totalmente saturada de melodia. Ele regeu uma orquestra na qual até mesmo a pesada voz da tuba foi obrigada a "cantar". A fim de obter um aumento da eloqüência de canções, Mahler quase revolucionou o idioma sinfônico de cada instrumento.

Ele explorou cada instrumento, não apenas pelo efeito musical mais claro de que foi capaz, mas ainda mais pelo seus tons emocionais mais marcantes, assim dotando a linguagem da orquestra com um poder psicológico que nunca havia desfrutado antes. A prôdiga profusão destes usos inesperados da instrumentação foi a função estranha que criou, em grande parte, a falta de entendimento público da sua música.

Apenas as flautas, que o hábito dos mestre transformou em veículos de doces melodias foram agora ouvidas com sons etáreos, totalmente desprovidas de expressão, como se estivessem soando em distâncias infinitas. O brilhante e pequeno clarinete E-chato, recentemente abduzido por Mahler das bandas militares, agora invadiu os orgulhosos recintos da orquestra sinfônica e foi ouvido em explosões de escárnio, grotesco a ponto de ser obsceno. Devido as paródias presentes neste instrumento reformado, nem mesmo a atmosfera sombria de uma marcha fúnebre estaria protegida de uma interrupção de alegre irreverência. O feitiço da maioria dos momentos suaves seria rudemente quebrado por uma zombaria instrumental. O oboé, cuja voz se lança mais alto e acostumada a caminhos doces de luta, foi ouvido cantando confortavelmente agora em seu registro natural, médio. O fagote ficou de repente muito eloqüente expressando a dor reprimida, mais convincente em seus tons mais altos. O contrabaixo teria uma forte observação grotesca para fazer sozinho.

A trompa de cujo tratamento a maior parte das autoridades concordam que Mahler foi o grande mestre de todos os tempos) nunca teve tanto a dizer. Ao nobre nível de expressividade que alcançou nas mãos de Bruckner, Mahler adicionou um novo poder, permitindo que, atravês de ecos distantes, conduza uma idéia já explorada a uma atmosfera musical mutante. Algumas vezes uma trompa solo terá um efeito de suplantar todo um coro, na qual esteve submersa; ou ao cantar seus tons mais profundos, dar á passagem um ar trágico. No uso feito por Mahler de todos os recursos da trompa, cada registro parece possuir um significado psicológico diferente.

Os motivos curtos, agudos, do tipo "fanfarra" do Trompete, tão característicos de Wagner e tão eficazmente transplantados por Bruckner na sinfonia ganham nova vida com Mahler; porém, seja desaparecendo suavemente numa cadência doce, ou cantando com bravura, soando com intensidade cada vez maior, conduzindo a um poderoso clímax din?mico coroado com um toque triunfal de metais e percussão macios. Ou, quando o uso tinha conduzido á crença de que a intensificação da linha melódica era a tarefa peculiar de muitos instrumentos em uníssono, Mahler evitaria que a claridade dessa linha fosse encoberta por vozes macias, pedindo a um único trompete para executar o tema com intensa paixão. Acima de um ritmo secundário poderoso, marcado por um coro de trombones e percussão, ele um trombone solitário para verter sofrimento de maneira nobre, pungente e recitativa. Nunca tanto significado tinha sido atribuído ao grupo de percussão, como a que Mahler lhe deu. Sua maestria neste setor era uma herança dupla de fascínio com o que ele tinha ouvido quando criança - os temas marciais que vinham das barracas de Iglau*. Freqüentemente ele ainda combinaria diversos instrumentos de percussão dando a eles um espantoso tratamento de contraponto, muito como se eles fossem verdadeiros instrumentos de solo.

"A tradição é desleixada" era o seu refrão freqüentemente repetido. Ele rejeitava todos os meios estereotipados de alcançar um efeito desejado e era freqüentemente a extrema originalidade da sua solução de um problema instrumental que, embora carregando um significado mais rico, era visto pelo ouvinte sem compreender, acostumado ás combinações convencionais, como meramente grotesco. Nessa linguagem musical intensificada e esclarecida, entretanto, não havia nada de realmente revolucionário. Ela não significava nada além do desenvolvimento inevitável da linguagem orquestral colocada face á face com toda uma geração pelo gênio de um homem.

Sua grande maestria das possibilidades de "cor" de cada instrumento manteve Mahler como o compositor absoluto de sinfonias, rigorosamente moderno no "programa" musical mundial. Com esta habilidade ele podia se permitir passar ao largo daqueles que cegamente riscavam o sacrifício do contexto musical para o sensacional efeito das hábeis combinações instrumentais. Não havia emoção que ele não conseguisse expressar claramente sem abandonar um método puro e linear tão essencialmente legítimo quanto aquele de Bach. Através de uma linha contrapontística ordenada, baseada no idioma eloqüente de Ills, ele alcançava "cor" e ainda mantinha a claridade transparente da expressão que, no mundo orquestral mais elevado, se tornou sinônimo do nome Mahler.

O originalidade do seu método era tão gritante e vital que rapidamente criou uma "escola" de emuladores, porêm pouco preocupados com o conteúdo real das suas sinfonias. Passou-se uma geração, enquanto as últimas obras do grande músico vieram á existência, a "sinfonia de câmara" cuja paternidade das muitas vozes solo o método "linear-colorístico" de Mahler assumiu e acima desse espírito a voz do compositor se manteve cochichando "Criem algo novo, crianças, sempre algo novo".

Tradução - Guiomar Torgan

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