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sábado, 22 de janeiro de 2011

Toda a liberdade de Bernstein

Sai no Brasil o histórico concerto em que o maestro troca verso de Schiller, usado por Beethoven

O belo mas traiçoeiro manto sublime que envolve as artes costuma esconder o fato de que, como todos os demais seres humanos, os artistas também são políticos, como dizia Picasso em seu linguajar direto como um gancho de esquerda: "O que você pensa que um artista é? Um imbecil que só tem olhos se é pintor, ou ouvidos se é músico, ou uma lira em algum canto de seu coração se é poeta, ou até, se é um boxeador, tem apenas músculos? Ao contrário, ele é ao mesmo tempo um ser político (...) A pintura não é feita para decorar apartamentos. É um instrumento de guerra para ataque e defesa contra o inimigo."

Ele talvez tenha esquecido que os pintores levam vantagem em relação aos compositores, por exemplo, porque ninguém pode mexer em suas obras. Guernica, por exemplo. Ela lá está, íntegra até hoje, no Centro Nacional de Arte Rainha Sofia, em Madri. Pode-se gostar ou não da mensagem política que ela pronuncia visualmente, mas não se pode desfigurá-la. A música já não desfruta esse privilégio, como demonstra o DVD que agora sai no Brasil pela Opus Arte por R$ 39, com uma execução muito especial da Nona Sinfonia de Beethoven, regida pelo maestro norte-americano Leonard Bernstein na noite de Natal de 1989, poucos dias depois da queda do Muro de Berlim.

O concerto possuía um significado histórico importantíssimo: marcou a unificação de Berlim e das Alemanhas. Instrumentistas norte-americanos (da Filarmônica de Nova York), franceses (da Orquestra de Paris), russos (da Orquestra do Kirov de Leningrado) e ingleses (da Orquestra Sinfônica de Londres) juntaram-se à Orquestra Sinfônica e Coro da Rádio Bávara, enxertados com coral de crianças da Filarmônica de Dresden.

A Nona é uma das obras mais intensa e ideologicamente manipuladas da história da música. Nos últimos 186 anos, como narra em detalhes o pesquisador Esteban Buch em Música e Política - A Nona de Beethoven, livro de 2001, ela serviu aos poderosos de plantão e foi usada para todos os fins. Um processo que alcançou um de seus clímax naquele 1989. Bernstein "operou cirurgicamente" uma palavra dos famosos versos cantados no movimento final, a célebre "Ode à Alegria": em vez de "Freude", alegria, mandou as centenas de coristas cantarem "freiheit", ou seja, liberdade. Isso tudo debaixo das barbas da estátua imponente do autor dos versos, o poeta e filósofo Schiller, na entrada do teatro berlinense que recebeu aquele concerto histórico.

Evidentemente, ninguém poderia discordar de uma mudança dessas. Falar de liberdade só pode soar positivo. E Bernstein, convenhamos, possuía uma legitimidade acima de qualquer suspeita para assumir a troca de palavras. Afinal, desde os tempos de estudante em Harvard, nos anos 30 do século passado, jamais escondeu de alguém sua postura política de esquerda.

O conteúdo de sua suculenta pasta confeccionada pelo FBI por meio século só foi divulgada há dois anos. A direita norte-americana não se conformava com o intenso ativismo político do maior músico de seu país, que recebeu, nos anos 60, panteras negras para jantar em seu elegantíssimo apartamento da Park Avenue, em Nova York, e propiciou ao então jornalista Tom Wolfe a criação da expressão "radical chic".

A questão básica, entretanto, é outra. Ao alterar a letra de uma obra como esta, Bernstein e todos os participantes do evento equipararam-se aos musicólogos, músicos e compositores nazistas que substituíram as letras dos corais de Haendel para introduzir louvores ao Reich dos Mil Anos. Teoricamente, as mudanças são de igual natureza.

Por isso, e mesmo que me chamem de ranzinza e ingênuo como xingaram, no passado, figuras como George Orwell e Arthur Koestler, sinto que a atitude mais adequada teria sido respeitar os versos tal como foram utilizados por Beethoven em sua sinfonia coral.

No curto texto no folheto interno do DVD, Klaus Geitel chega a aventar a hipótese de que "sempre se especulou que Schiller tenha feito um jogo verbal de esconde-esconde e que seu poema na verdade referia-se a liberdade, e não simplesmente a alegria"; e diz que Schiller fez isso para fugir da censura daqueles "tempos despóticos". Parece mais uma forçada de barra. Melhor sair do muro e assumir uma posição contra ou a favor. Em todo caso, bons tempos aqueles em que os músicos mudavam de lado por convicções ideológicas, e não por meras motivações individuais, como hoje em dia.

Quanto à performance - há, claro, uma enorme eletricidade no ar. As imagens prévias ao concerto de milhares de pessoas demolindo com picaretas o muro de Berlim impactam qualquer um. Mas a qualidade musical é mediana. Foi um "happening" beethoveniano. O máximo que se pode dizer é que a festa estava boa. E serviu para ilustrar um momento histórico, que marcou para muitos o verdadeiro fim do século 20.

Fonte: Estadão - 10 de Janeiro de 2010

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